A prática discursiva – Michel Foucault

A prática discursiva é aquilo que organiza os elementos que podem ser ditos numa explicação. É aquilo que organiza os signos que são considerados razoáveis para serem falados a respeito de qualquer objeto. É aquilo que permite que um objeto seja um objeto. É anterior à realidade significada, porque é a possibilidade de organizar os signos utilizados e entendidos socialmente.

Da série “A Arqueologia do Saber“.

prática discursiva em Michel Foucault

O que é uma prática discursiva?

Inicialmente, gostaria de começar este pequeno artigo com uma citação concisa de Michel Foucault presente n’Arqueologia do Saber:


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Finalmente, o que se chama “prática discursiva” pode ser agora precisado. Não podemos confundi-la com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser acionada em um sistema de inferência; nem com a “competência” de um sujeito falante, quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa.[1]

Não podemos confundir a prática discursiva com:

  1. Uma operação expressiva, ou seja, com a operação que movimenta o significado ao se avistar um signo em sua realidade empírica que precisa ser interpretado pela consciência[2];
  2. Uma atividade racional, ou seja, com a dedução ou indução lógica para se chegar a uma conclusão inevitável;
  3. Uma competência, ou seja, não se trata de uma prática presente no sujeito enquanto habilidade latente;

A prática discursiva não está no sujeito, não é produto de uma característica do sujeito. Se pudermos inserir o sujeito nesta explicação, a prática discursiva é aquilo que fundamenta a existência do sujeito da maneira como é, como se porta, como se coloca no mundo discursivo. Na verdade, a prática discursiva é um conjunto de regras anônimas delimitadas por elementos materiais que definem o exercício da função enunciativa.

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Já a função enunciativa, por sua vez, é o enunciado em prática, colocado em suas delimitações históricas e discursivas, inserido num contexto material e definido a partir da realidade presente de sua enunciação. A função enunciativa é justamente o atravessamento da possibilidade material de se enunciar por dentro das estruturas linguísticas, econômicas, sociais, políticas e institucionais que delimitam a possibilidade prática de sua existência.

Desta forma, a prática discursiva é o conjunto de regras anônimas materialmente delimitadas que permitem a produção, reprodução e repetição de enunciados na realidade concreta. É a soma das relações discursivas e não discursivas na delimitação de um discurso colocado em prática.

Para Foucault, a prática discursiva se encontra num intermeio entre as relações primárias e secundárias. Segundo Dreyfus e Rabinow:

Foucault explica, primeiramente, que as relações discursivas que permitem a existência de uma referência séria não são nem objetivas nem subjetivas. Elas não são aquilo que Foucault chama relações primárias – relações independentes do discurso ou de seus objetos “que podem ser descritas entre isntituições, técnicas, formas sociais etc”. Estas relações também não são relações secundárias – encontradas no modo através do qual o sujeito que fala as utiliza para definir reflexivamente seu comportamento. “(…) o que, por exemplo, os psiquiatras do século XIX puderam dize das relações entre a família e a criminalidade não reproduz (…) o jogo das dependências reais; nem o jogo das relações que tornam possíveis e sustentam os objetos do discurso psiquiátrico.” Certamente, “as instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos econômicos” têm uma incidência sobre a seriedade de um discurso e, é claro, os locutores individuais que querem ser considerados seriamente devem falar sobre o tipo de objeto aceito pela comunidade científica a qual pertencem, porém, o que determina as normas de seriedade não são as relações reais ou primárias nem as secundárias ou reflexivas, mas a maneira pela qual estas relações primárias e secundárias são organizadas pela prática discursiva.[3]

Ou seja, a prática discursiva não é produto da realidade institucional, das relações econômicas ou políticas, ela não é produto de uma outra esfera da realidade social. Ela tem sua própria realidade.

Ao mesmo tempo, também não é produto daquilo que os próprios sujeitos falam sobre si e sobre sua participação no mundo. Não se trata de uma opinião ou de um produto da consciência individual. Trata-se de uma realidade que possibilidade o dizer sobre si.

A prática discursiva é aquilo que organiza os elementos que podem ser ditos numa explicação. É aquilo que organiza os signos que são considerados razoáveis para serem falados a respeito de qualquer objeto. É aquilo que permite que um objeto seja um objeto. É anterior à realidade significada, porque é a possibilidade de organizar os signos utilizados e entendidos socialmente.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Arqueologia e a história das ideias IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.143-144.

[2] PONTY, Merleau. O homem e a comunicação.

[3] P. Rabinow & H. Dreyfus, Michel Foucault – uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp. 231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 70-71.

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